19 de jan. de 2011

Especismo: conduta anti-ética e criminosa


A pesquisa e a experimentação de procedimentos clínicos e cirúrgicos com animais não-humanos, sob a alegação da necessidade destas para a formação de profissionais na área das ciências bio-médicas são práticas comuns e que vêm arraigada na cultura docente destes cursos há muitos anos, tanto que são realizadas, sem que haja um questionamento mais profundo, apesar do desconforto que muitas vezes os procedimentos trazem para os professores e alunos destes cursos.
Essas práticas remetem aos estudos e experimentos com seres humanos que ocorriam com muita frequência até o início do século XX, um exemplo disto é o que nos relata Kottow (2008, p. 58) ao mencionar os argumentos de Pierre-Charles Bongrand quando da apresentação de sua tese de doutoramento em 1905, Bongrand acreditava e defendia que “sob condições controladas, justificava-se submeter a risco de pesquisa os “idiotas”, os moribundos, os prisioneiros e os condenados à morte [...]” (grifo do autor). Este raciocínio é o mesmo que justifica as pesquisas e os experimentos com os animais, pois, para Bongrand, as pessoas com deficiência mental, os que estavam à beira da morte e os transgressores da lei, de alguma forma e em algum momento perderam a sua identidade enquanto pessoa humana, e, se não é eram humanos, poderiam e deveriam sofrer para a promoção do desenvolvimento da ciência. Hoje este pensamento se mostra um equívoco, mas para chegarmos até aqui, um longo caminho de promoção da ética na pesquisa foi percorrido.
O especismo é um termo que foi usado pela primeira vez por Richard D. Ryder, em 1970, quando da confecção de um panfleto. Especismo é definido, pelo próprio Ryder (2008, p.5) como a “[...] discriminação abrangente praticada pelo homem contra outras espécies [...]”, em outras palavras é a atribuição à animais sencientes de valores diferentes e direitos baseados em sua espécie. Ryder (2008) compara o especismo ao racismo, entendendo que ambos são formas de preconceito baseados nas aparências e que se a sociedade já não tolera mais o racismo, na mesma medida deve repudiar o especismo.
Há dois tipos de especismo conhecidos, quando se trata da atribuição valorativa ao sofrimento animal: (1) o especismo comum ou elitista, que tem grande ligação com o antropocentrismo, onde todo ser que não for humano pode ser sacrificado, ou sofrer em prol do bem maior da humanidade; e, (2) o especismo específico que é aquele em que se escolhem determinadas espécies para valorar seus sofrimentos e, portanto, serem protegidas, enquanto outras não têm a mesma proteção. Um exemplo deste tipo de especismo é a indignação que causa as imagens que circulam na internet, dos mercados coreanos onde se vê cachorros em gaiolas para serem vendidos para abate e a indiferença com a mesma situação das galinhas em mercados públicos de qualquer cidade brasileira.
Podemos, ainda, classificar dois tipos de especismo, quando se leva em consideração os argumentos para justificar o uso dos animais em pesquisa e seu consequente sofrimento: (1) o especismo genuíno é aquele que trabalha com o argumento a superioridade genética da espécie humana; e, (2) o especismo não-genuíno, que justifica os abusos com animais a partir de argumentos baseados nas habilidades morais, que são privativas do ser humano. Assim, os animais não tendo um código de comportamento moral não mereceriam proteção de seus direitos básicos à vida e à integridade física.
Peter Singer, professor e filósofo australiano, é um ferrenho defensor dos direitos dos animais, escritor de vários livros e artigos sobre o assunto, ele, em uma entrevista, faz um aproximação do especismo com o racismo aos dizer que:

[...] não é fácil colocarmo-nos na posição dos animais, mas devemos tentar fazê-lo. O facto de os animais não serem membros da nossa espécie não pode justificar o nosso desrespeito pelos seus interesses — tal como não podemos justificar o desrespeito pelos interesses de outros seres humanos com base no facto de não pertencerem à nossa nação ou raça. (SINGER, 2001)

Esse filósofo entende que os animais são conscientes na medida em que tem a possibilidade de sentir dor, e imprimir dor a animais não é uma atitude ética. O vídeo “Não Matarás” demonstra a inutilidade e até o sadismo de algumas práticas realizadas com os animais em “prol da ciência”. Todavia, a lei do Meio Ambiente ( lei 9.605/98) estabelece, em seu artigo 32, parágrafo 1º, que comete crime com pena de detenção de três meses a um ano e multa, aquele que realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. Tendo em vista a existência de universidades, em outros países e no Brasil, que já não usam animais em suas aulas, percebemos que existem sim, estes recursos alternativos aos meios tradicionais que usam, torturam e sacrificam animais em nome do ensino.
Diante de tudo o que foi exposto neste pequeno ensaio, notamos que as práticas de uso de animais em pesquisa e para fins didáticos de forma indiscriminada, sem a devida atenção ao fato de serem entes dotados da percepção de dor e sofrimento, já não são apenas práticas antiéticas, mas ilegais e criminosas.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Site do Planalto. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9605.htm>. Acesso em 2 jul. 2009.
KOTTOW, Miguel. História da ética em pesquisa com seres humanos. In: DINIZ, Débora et al (Org.). Ética em pesquisa: temas globais. Brasília: Editora UNB, 2008. p.53-86.
RYDER, Richard D. Vítimas da ciência. Pensata Animal: Revista dos Direitos dos Animais, ano II, n. 16, out. 2008. Disponível em <http://www.sentiens.net/central/PA_ACD_richardryder_16.pdf>. Acesso em: 2 jul. 2009.
SINGER, Peter. Entrevista com Peter Singer. CMI Brasil. Centro de Mídia Independente. 13 nov. 2001. Disponível em <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2001/11/10768.shtml>.Acesso em 2 jul. 2009.

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