Mulher de vítima a autora: a inversão de papéis
Após a Constituição Federal de 1988, a doutrina e
jurisprudência brasileira passaram a ter como um dos seus princípios basilares
a igualdade de gênero, o princípio da isonomia entre homens e mulheres,
consagrado no seu art. 5º, I.
Art.
5. [...]
I-
homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição.
Mas, algumas vezes nos deparamos com juízes, que ao
realizarem a judicatura e ao falarem como voz do Estado-juiz, colocam em suas
sentenças rastro de uma ideologia eivada de preconceitos contra as mulheres.
Foi o que ocorreu recentemente (em 2007), na sentença de um juiz de Sete Lagoas
que ao decidir pela inconstitucionalidade da lei 11.340/2006, conhecida como lei
Maria da Penha, decisão que juridicamente pode encontrar respaldo, aproveitou
para colocar em sua peça processual frases como:
[...]
esta Lei Maria da Penha é, portanto, de uma heresia manifesta. Herética porque
é antiética; herética porque fere a lógica de Deus; herética porque é
inconstitucional e por tudo isso flagrantemente injusta. Ora! A desgraça humana
começou no Éden: por causa da mulher - todos nós sabemos - mas também em
virtude da ingenuidade e da fragilidade emocional do homem. (...) a mulher
moderna - dita independente, que nem de pai para seus filhos precisa mais, a
não ser dos espermatozóides - assim só o é porque se frustrou como mulher, como
ser feminino. (CNJ, 2007)
O juiz chega, como observamos, a fazer menção à
teoria criacionista do universo, onde Eva teria sido a responsável pela
expulsão do homem do paraíso, nesta decisão o magistrado demonstra que ainda
não se conseguiu superar todos os aspectos de preconceito e rancor
culturalmente enraizado no inconsciente coletivo.
Diante de situações concretas como esta, nos
questionamos, como a vítima do crime de estupro é tratada por aqueles que têm a
missão de aplicar a justiça e restaurar a harmonia social?
O crime de estupro tem
como grande problema os meios de prova. Quando o Estado busca os meios
probatórios para averiguar a existência e a autoria do fato delituoso, corre-se
o risco de se esbarrar em preconceitos que passaram a revitimizar a mulher que
sofreu tão séria agressão à sua liberdade sexual.
Na década de 50 do século passado, Altavilla (1982)[1]
atribui à mulheres, em especial à jovens uma tendência natural á mentira
decorrente de sua sexualidade “[...]que ainda em forma inconsciente, inspira,
com freqüência, denúncias por crimes sexuais.”(p.228)
Este pensamento ajuda a entender porque até pouco
tempo o testemunho da mulher era admitido com muita cautela nos tribunais
brasileiros.
Inocorrência- Violência não
comprovada_ vítima que, embora não fosse rameira, era moça fácil_ Local ermo em
que se encontrava para manter relações sexuais com o namorado, quando abordados
pelos acusados, companheiros daquele_ Tratando-se de mulher leviana, cumpre
apreciar com redobrados cuidados a prova da violência. E ainda mais a vis compulsiva. Para a condenação é
mister que essa prova seja estreme de dúvida. (TJSP-AC- Rel. Xavier Homrich- RT
537/301. In: FRANCO, 1995, p. 2398).
Observamos, pela decisão citada, que o juiz tomava
com cautela o testemunho da vítima, principalmente se esta não tivesse um
comportamento sexual tido como normal. Mesmo a prova da violência física não é
vista como definitiva. Diante disto, a mulher encontrava-se em um situação de
muita fragilidade, desestimulada a denunciar a ocorrência do crime o que
dificultava a apuração dos fatos, contribuindo para deixar impune os seus agressores
sexuais. Foi a constatação do preconceito existente na própria polícia, que
ensejou da criação das delegacias das mulheres.
A primeira delegacia da mulher do Brasil, e uma
instituição pioneira também no mundo, criada em São Paulo, em 1985 (SANTOS, 2001),
surgiu do anseio popular para reverter o quadro de fragilidade da mulher como
vítima vista até então como provocadora do crime, tornando clássicas frases do
tipo “mulher gosta de apanhar”, em “caso de estupro relaxe e goze”.
Aos poucos a doutrina foi modificando o seu
pensamento quanto ao testemunho da vítima do crime de estupro. Capez, hoje,
ensina que:
Via de regra, a palavra da vítima
tem valor probatório relativo, devendo ser aceita com reservas. Contudo, nos
crimes praticados às ocultas, sem a presença de testemunhas, como nos delitos
contra os costumes, a palavra da vítima, desde que corroborada pelos demais
elementos probatórios, deve ser aceita (2006, p.11)
Este tem sido o pensamento das turmas do STF:
Não
obstante os laudos periciais atestarem a inexistência de atos libidinosos, de
conjunção carnal e de lesões corporais, a palavra da vítima, de crucial
importância nesses delitos, corroborada por provas testemunhais harmônicas,
autoriza a condenação que para ser elidida, demanda inegável revolvimento
fático-probatório, não condizente com a via augusta do writ. (STJ 6ª turma, HC
9.790-MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 16-5-2000, DJ, 12-6-2000, p. 135. Apud:
CAPEZ, 2006, p. 12)
Outro exemplo recente é o acórdão do STF de novembro
de 2007, que estabelece:
HABEAS
CORPUS - CRIMINAL – ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. –EXAME APROFUNDADO DO
MÉRITO E DA PROVA NO WRIT.
IMPOSSIBILIDADE –RELEVÂNCIA DA PALAVRA DA VÍTIMA – PRECEDENTES ORDEM
DENEGADA.1- O habeas corpus não comporta exame aprofundado da prova e do mérito
da imputação.2- A palavra da vítima é de alta relevância nos crimes de estupro
e atentado violento ao pudor, cometidos na clandestinidade. (Precedentes).3-
Ordem denegada. (HC 66651 / SP -2006/0204474-0, 4ª Turma, Rel Min, Jane Silva)
Assim, o testemunho feminino é hoje aceito, pelo
menos nos tribunais superiores, como forte meio probatório para elucidar um
crime que tem por característica, ser realizado às escusas, e que o agressor,
dos crimes sexuais, tende em sua fantasia pervertida a acreditar que a relação
sexual trouxe satisfação para sua vítima.
Soares(2003) , ao se questionar sobre a culpa da
mulher na violência sexual que sofre cita Frederich Storakas, diretor da
Organização Americana de Prevenção do Estupro, que ao examinar mais de três mil
casos categorizou os estupradores em dois níveis: “[...] o homem que se
considera inferior, coloca a mulher em um pedestal e a estupra para se sentir
superior; e o homem que realmente entende que a mulher se oferece.” (grifo
autor) (p. 307)
Esta evolução do pensamento da doutrina e da
jurisprudência em considerar o testemunho feminino destituído de qualquer forma
de preconceito, se coaduna com os movimentos em prol da ilustração feminina que
ao longo de poucos séculos mudou a forma de pensar e o papel da mulher na
sociedade moderna.
Mesmo percebendo que a mulher já encontra acolhida
no aparelho estatal formal, casos recentes demonstram o quão longe estamos do
ideal.
No mês de novembro de 2007 começou a surgir uma
série de denúncias de mulheres que estavam sendo mantidas presas em celas
lotadas de homens, e lá eram submetidas a todo tipo de sevícias.
As denúncias começaram quando veio a público,
através da impressa nacional o caso de uma adolescente de 15 anos que
permaneceu presa com 20 homens em uma cela de Abaetetuba, cidade paraense
(BRASIL, 2007), a falta de sensibilidade com a fragilidade da mulher em uma
situação como esta ficou demonstrada quando a discussão ficou em torno da
comprovação ou não da situação de menoridade da jovem, e depois da tentativa do
delegado do caso em dizer que a menina era deficiente mental. Em qualquer caso,
seja a vítima, deficiente ou não, adolescente ou adulta, a gravidade consiste
em submeter a mulher a uma situação de fragilidade frente aos abusos que poderá
sofrer ao ser colocada enclausurada com homens. O fato ainda fica mais grave
porque a adolescente só foi colocada a salvo após a denúncia ter chegado à
imprensa, ficando a sociedade, a polícia e o judiciário de olhos e ouvidos
cerrados para esta situação, talvez até acreditando que a jovem era a única
culpada por sua situação. Mesmo a punição que se tem notícia pela imprensa para
as autoridades responsáveis pelo caso passam longe da esfera penal,
restringindo-se a responsabilidade de ordem administrativa.
Depois deste caso, surgiu um grande número de
denúncias semelhantes, como o caso de
Antonia Claudia dos Reis que passou oito meses em uma cela com quarenta homens,
em Itarema, município do Ceará. Ela foi acusada de tráfico de drogas e ficou
nessa a situação irregular até vir à tona o caso da adolescente no Pará, quando
foi colocada em prisão domiciliar. (SOUSA NETO, 2007)
Conclusões
Por todo caminho percorrido na pesquisa uma questão
norteou a nossa trajetória: Diante da classificação de Mendelsohn como se
classifica a vítima do crime de estupro, para os aplicadores do direito?
Percebemos que ao longo do seu percurso histórico a
mulher galgou grandes vitórias e conseguiu alcançar direitos que antes lhes
eram negados. No entanto, a mudança da percepção do seu papel social,
notadamente, do seu comportamento sexual, equiparando-se ao homem tem alcançado
vitórias menos acentuadas.
A forma como a mulher é tratada quando é vítima de
estupro ainda encontra relação com o comportamento que a sociedade de resquícios
patriarcais lhe impõe. Quanto mais se comporta sexualmente de forma
irrepreensível, menos terá culpa na agressão sofrida, em contrapartida,
torna-se provocadora do comportamento do seu agressor, quando, contrariando o
desejo social, possui um comportamento sexualmente mais permissivo.
O crime de estupro é um crime muito grave,
classificado, inclusive, entre os crimes hediondos, que para sua realização
exige a violência física ou moral de natureza grave, retirando da sua vítima a
completa disposição da sua liberdade sexual. Assim, independente de
comportamento sexual de sua vítima, o agressor, neste crime, merece uma punição
grave e exemplar. Esse tipo de crime não pode ser instrumento para extravasar o
rancor social, em relação às mulheres que não se adéquam, aos parâmetros
sexuais impostos pela comunidade em que vive.
Desta maneira, percebemos ao longo da pesquisa, que
mesmo já tendo modificado substancialmente o tratamento da mulher vítima de
estupro, principalmente em relação à aceitação do seu testemunho. A mulher
ainda é vista como uma vítima provocadora do crime de estupro, seja porque
esteve em local perigoso, seja porque provoca a agressão com seu comportamento.
Uma vez constatado este fato, é mister, buscar a superação de mais este
preconceito decorrente da relação de gênero.
[1]
A edição em português do livro Psicologia judiciária de Enrico Altavilla é do
ano de 1982, mas refere-se a quarta edição em italiano publicada em 1955