Ao longo da trajetória
da humanidade, à mulher foi, muitas vezes, relegado o papel de vítima, mas
paradoxalmente, uma vítima culpada por sua situação. Ou seja, as segregações,
discriminações, e violências que sofria, nada mais eram que conseqüências de
sua própria idiossincrasia. Exemplos dessa natureza permeiam os livros de
história, literaturas, e, infelizmente, os noticiários e a realidade
contemporânea.
O crime de estupro, em
que a mulher sofre uma agressão à sua liberdade sexual, não foge desta
realidade. O olhar sobre a vítima deste crime normalmente não assume uma
atitude acusatória, buscando a forma como se vestia no momento do delito,
investigando o seu comportamento moral e sexual, anterior e posterior ao crime
para, de alguma forma, atribuir-lhe parte ou toda a responsabilidade pelo ato
criminoso.
Iniciando nosso estudo, é mister conceituarmos a
vitimologia, uma ciência nova que a pouco se apartou da criminologia para
desenvolver um estudo acerca da vítima, que é um dos elementos do fenômeno
criminal (SOARES, 2003).
A vítima, na Antiguidade, tinha o poder de aplicar a
pena ao seu agressor e por isto mesmo possuía grande importância para a
persecução penal, vivia-se a época da vingança privada e justiça privada, mas a
partir da idade média seu prestígio diminuiu, chegando mesmo a ser esquecida na
esfera criminal, nesta fase os senhores feudais, a igreja e os reis assumiram o
papel de sancionadores e aos poucos também a iniciativa processual. Antonio
Fernandes (1995) ensina-nos que somente a partir da segunda metade do século XX
que a vítima voltou a ser redescoberta, iniciando ainda no século XIX com a
discussão em âmbito internacional sobre reparação do dano à vítima.
Mas quem seria a vítima que estamos falando? Mesmo
podendo trabalhar o conceito de vítima sob vários aspectos como literal,
doutrinário, sociológico, optamos por conceituá-la a partir de seu sentido
jurídico-criminal, assim vítima é a pessoa física ou jurídica que sofre lesão
ao bem jurídico tutelado pela norma penal, em outras palavras, vítima seria
quem sofre lesão ao bem jurídico decorrente da conduta do autor do crime.
Dentre todas as vítimas de crimes,
vamos nos ater à mulher vítima do crime de estupro, que atualmente pode ter como vítima tanto o homem quanto a mulher, e analisar o peso que o aspecto gênero possui para os aplicadores
da lei no Brasil.
As mulheres ao longo da história sofreram muito com
os estimas que lhes foram perpetrados.
Cornwell chega a afirmar que:
O
centro do universo da mulher era o útero, e os ciclos menstruais provocavam
distúrbios tempestuosos- desejo intenso, histeria e insanidade. As mulheres
pertenciam a uma categoria inferior e eram incapazes de pensamento racional e
abstrato [...]. A mulher devia sentir prazer no sexo pela única razão de que o
orgasmo era considerado fisiologicamente
essencial para a secreção dos fluidos necessários à concepção. Para a
mulher solteira, sentir o “frêmito”, sozinha ou acompanhada, era uma perversão
e uma séria ameaça à sanidade, à salvação e à saúde. (2003, p.26)
A autora, afirma, ainda, que esta doença era curada
com a clitorectomia, ou seja a extração do clitóris. A conseqüência mais grave
da difusão deste pensamento era em relação às mulheres vítimas de estupro.
Se
uma mulher violentada engravidasse, tinha tido um orgasmo durante o ato sexual
e a relação não podia ter ocorrido contra a sua vontade. Se não engravidasse,
não podia ter tido um orgasmo, o que indicava que suas alegações de estupro
talvez fossem verdadeiras. (CORNWELL. 2003, P.26)
Esta concepção não está distante no passado, mesmo
nas sociedades contemporâneas, muitos são os exemplos de inversão do papel de
vítima e agressor de forma pouco lógica, baseada apenas em idiossicrasias
culturais de gênero. Um exemplo é o caso de Min Min Lama de 15 anos que mora no
Nepal foi estuprada pelo irmão de sua cunhada e em decorrência do fato veio a
engravidar, e em razão deste fato ela realizou um aborto. Após ser delatada por
sua cunhada, ela e o estuprador foram presos, ele pagou fiança e foi solto,
depois foi absolvido, enquanto ela recebeu uma pena de 20 anos de prisão.
(REVISTA MARIE CLARIE, 2000)
Há ainda uma estimativa alarmante trazida para o
público brasileiro através da mesma reportagem, três em cada quatro mulheres
presas no Paquistão estão na cadeia porque foram estupradas.
O
estuprador só vai preso se houver quatro testemunhas masculinas que tenham presenciado o ato da penetração - uma prova
impossível de conseguir. A mulher, por outro lado, é presa porque, quando
admite que foi estuprada, admite também que fez sexo fora do casamento, o que é
ilegal. (REVISTA MARIE CLAIRE, 2000) (grifo
nosso)
No Brasil, durante muito tempo se considerou lícito
o estupro realizado pelo marido contra sua esposa, considerando, conforme nos
trazia Noronha (1995), que é dever dos cônjuges as mantenças regulares de
relações sexuais, tendo o marido direito à posse sexual que não pode ser
resistida pela esposa. Sendo, assim, o uso da violência e da grave ameaça
justificados como exercício regular de direito, que é uma causa de exclusão da
ilicitude da conduta.
Assim, o autor ensinava que “A violência por parte
do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da
esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo,
todavia, ele pode responder pelo excesso cometido.” (1995, p. 104).
De acordo com este posicionamento, o marido só
realizaria o crime de estupro se agisse com animus
de realizar atos de sodomia ou buscasse o coito anal ou oral. (COSTA. 2003)
Também os juízes e tribunais concordavam com esse
argumento.
Exercício
regular de direito. Marido que fere levemente a esposa, ao constrangê-la à
prática de conjunção carnal normal. Recua injusta da mesma, alegando cansaço.
Absolvição mantida. Declaração de voto [...] A cópula intra matrimonium é dever recíproco dos cônjuges e aquele que usa
de força física contra o outro, a quem não socorre escusa razoável (verbia gratia, moléstia, inclusive
venérea, ou cópula contra a natureza) tem por si a excludente de criminalidade
prevista no art. 19, n. III, do Código Penal, exercício regular de direito.(TJGB,
RT, 461/444, In: ANDREUCCI, 2007, p. 474)
O art. 19 a que faz menção a decisão corresponde ao
atual art. 23, III do código penal após a reforma de 1984.
Assim, temos um exemplo consagrado pela doutrina e
jurisprudência da época que o comportamento da vítima autorizava a realização
do crime. A mulher era considerada a responsável pelo comportamento agressivo
do seu marido, quando se negava a manter relação sexual, do tipo cópula lícita,
isto o autorizava a usar dos meios que tinha à mão para obter o seu direito,
neste caso observando a classificação de Mendelsohn, a vítima é considerada
como única responsável pelo fenômeno criminoso.
Felizmente, a doutrina mudou de opinião.
[...]
o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro, pois o dever de manter
relações sexuais entre esposos, nos tempos atuais, em que o bem jurídico é a
liberdade sexual e a autodeterminação da mulher, podendo dispor do uso do seu
corpo, não será o casamento que lhe retirará o direito de não ser submetida,
mediante violência ou grave ameaça, a copular com seu marido. (COSTA. 2003, p.
1419)
Com o casamento surge realmente o dever de relações sexuais
entre os cônjuges, mas este vínculo não autoriza, como acertadamente já
entendem os tribunais, o cônjuge que vê a sua solicitação negada a usar da
força física ou da ameaça para satisfazer o seu desejo. Caso isto aconteça
haverá um crime que poderá ser o de estupro.
“Não há falar em relação sexual admitida, com base
em alegação de congressos sexuais anteriores, pois até o marido pode ser agente
ativo dessa espécie de delito.” (TJRS, RJTJRS, 174/157. Apud: ANDREUCCI, 2007,
p. 473)
Hoje tanto o homem como a mulher podem ser
sujeitos passivos do crime de estupro, sem necessidade que apresente qualquer
capacidade especial, e assim já se entendia mesmo antes da mudança trazida pela lei 12.015 de 2009.
Não
importa seja a vítima solteira, casada ou viúva, uma vestal inatacável ou uma
meretriz de baixa formação moral. Em qualquer hipótese é ela senhora de seu
corpo e só se entregará livremente, como, quando, onde e a quem for do seu
agrado (TJ, RT, 435/106. In: ANDREUCCI, 2007, p. 473)
Este entendimento, no entanto, nem sempre foi aceito
com tranqüilidade. Para Noronha(1995) o estupro cometido contra prostituta
devia ser tratado de forma diferente do crime cometido contra a mulher honesta.
Para este autor:
A
meretriz estuprada, além da violência que sofreu, não suporta outro dano. Sem
reputação e honra, nada tem a temer como conseqüência do crime. A mulher
honesta, todavia, arrastará por todo o sempre a mancha indelével com que a
poluiu o estuprador- máxime se for virgem, caso que assume, em nosso meio,
proporções de dano irreparável. No estupro da mulher honesta há duas violações:
contra a liberdade sexual e contra a honra; no da meretriz, apenas o primeiro
bem é ferido. (p. 105)
Tal entendimento, não poderia
prosperar, e os tribunais brasileiros, de forma uníssona, admitem que a mulher,
quaisquer que sejam suas qualidades morais, será vítima do mesmo crime contra a
liberdade sexual quando forçada a manter cópula vagínica contra sua vontade.
Outro aspecto importante a ser considerado é o
estupro por temor reverencial, neste caso estamos diante de um crime cometido
por ascendente em relação à descente, onde a chantagem decorre do temor
reverencial inerente à esta relação, a questão que se impõe é se neste caso
específico em não se caracterizando a presunção de violência haverá configurado
o crime. O entendimento dos tribunais tem sido no sentido de que o temor
reverencial retira a necessidade de prova da violência ou da grave ameaça.
Na
cópula de mulher virgem maior de 14 anos de idade com ascendente há,
necessariamente, da parte deste, violência moral acrescida de temor
reverencial, por si só capaz de tolher a defesa da vítima, pelo respeito e
obediência devidos ao ofensor, irrelevante, portanto, para a configuração do
estupro que não tenha havido grave ameaça direta ou explicita (TJSP:RT 639/292.
In: MIRABETE, 2005, p. 1757)
Diante do fato de inexistir a necessidade de um
comportamento sexual irrepreensível para a configuração do crime em estudo,
podendo ser sujeito passivo deste crime desde a mulher casada e a virgem até a
prostituta, surge o questionamento, se a pessoa da vítima, em razão do seu modo
de ser e de comportar-se na sociedade brasileira, que possui resquícios de uma
cultura patriarcal, influencia na decisão do julgador a ponto de torná-la
responsável pelo crime que sofreu. É o que passaremos a investigar a seguir.
Referências:
ALTAVILLA,
Enrico. Psicologia judiciária II:
personagens do processo penal. 2 ed. Coimbra: Arméino Amado, 1982.
ANDREUCCI,
Ricardo Antonio. Código penal anotado.
São Paulo: Saraiva, 2007.
BRASIL, Kátia.
Mãe de garota presa com homens no PA diz que "delegado é que é
doido". Folha on line.
Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u349597.shtml>. Acesso
em 2 dez 2007.
BRASIL. Códigos
penal, processo penal e constituição federal. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2007
CORNWELL, Patrícia.
Retrato de um assassino: Jack, o
estripador: caso encerrado. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
COSTA, Álvaro
Mayrink da. Direito penal. Parte
especial. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
FERNANDES,
Antonio Scarance. O papel da vítima no
processo criminal. São Paulo: Malheiros, 1995.
FERNANDES,
Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia
integrada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
MOREIRA FILHO,
Guaracy. Vitimologia:o papel da
vítima na gênese do delito. São Paulo: Editora Jurídica, 1999.
MULHERES do mundo.
Elas ainda vivem com medo. Revista Marie
Claire, n. 109, abril 2000. Disponível em:
<http://marieclaire.globo.com/edic/ed109/rep_terror1.htm> Acesso em: 13
dez 2007.
NORONHA, E.
Magalhães. Direito penal. Vol 3. 22
ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
SOARES, Orlando.
Curso de criminologia. Rio de
Janeiro: Forense, 2003.
SOUSA NETO.
Mulher passa oito meses em cela com 40 presos. Diário do Povo do Piauí. p.7, 15 dez. 2007.
[1]
Mesmo que alguns autores considerem com significado diferentes, neste artigo
optamos por usar os termos vítima, sujeito passivo, prejudicado como sinônimos.
[2]
A edição em português do livro Psicologia judiciária de Enrico Altavilla é do
ano de 1982, mas refere-se a quarta edição em italiano publicada em 1955