8 de mar. de 2021

Uma Reflexão sobre Saúde e Cultura

Ao constatarmos que estamos findando a primeira década do século XXI, que nasceu sob o signo do desenvolvimento cultural e tecnológico, custa-nos acreditar o quanto os aspectos culturais, notadamente os ligados aos preconceitos e ritos, ainda influenciam o imaginário de nosso povo. E esta realidade é muito nítida quando nos deparamos com as causas e curas das doenças que assolam o mundo moderno.

O livro de Susan Sontag, “Doença como Metáfora”, traz, em um texto de leitura fácil, a constatação desta realidade que, apesar de ser muito antiga, ainda é presente nos dias atuais, como restou provado pela comparação que a autora fez  entre a tuberculose e o câncer e o significado que cada uma destas doenças recebeu nas sociedades em que elas ocorreram de forma mais intensa.

Não é incomum, a origem do câncer ser atribuída a problemas de ordem emocional, isto fica muito claro, por exemplo, quando lemos o depoimento do ex-deputado federal Clodovil Hernandes, morto em março de 2009, que afirmou em sua última entrevista à revista “Quem” em 11 de março de 2007: “Câncer não é um castigo, fui eu mesmo que o coloquei em mim. Passei tanto tempo me sentindo culpado por ser homossexual, que isso foi crescendo dentro de mim.”.

Assim, muitas vezes as causas das doenças são atribuídas aos próprios pacientes, em um processo que Sontag chama de punitivo, uma vez que quando a sociedade dá um sentido à alguma doença é, normalmente, de cunho moralista, atribuindo a culpa pelo adoecimento ao próprio paciente. Por vezes, diante do diagnóstico de uma doença terminal, espera-se que o paciente tenha uma reação de superação, positiva diante da sentença que está sendo dada, isto é festejado e até, subliminarmente indicado. E, quando não ocorre assim, qualquer agravamento do estado de saúde é atribuído ao fator emocional, à impossibilidade do doente aceitar ou conviver com o diagnóstico.

Por outro lado, há o pensamento, não raro entre nós, que a fé e a auto-estima elevada podem contribuir, e às vezes até promover, a cura de doenças. Uma perspectiva, que de todo, não é ruim, uma vez que a esperança é sempre um motor para o doente, mas que pode levar alguns a desprezar as indicações médicas por se considerarem erroneamente curados, e, assim, abandonando os tratamentos adequados. Mais grave ainda é quando a cura esperada não vem e isto é atribuído à falta de fé, a não ser merecedor, ou ser um castigo divino. O que leva o doente a uma situação de maior vulnerabilidade ainda.

Considerando sobre esses aspectos, tanto a origem da enfermidade quanto a sua cura, passariam pelas mãos do enfermo. Desta maneira, ele teria o dom de adoecer e curar-se. Com este raciocínio, levamos os que se encontram doentes a uma situação de sentirem-se, muitas vezes, incapazes de promover seu próprio restabelecimento.

A doença, na sociedade humana, não é apenas um estado fisiológico, uma disfunção orgânica ou o ataque de agentes patológicos, mas é muito mais. Envolve o conceito de estima, de sensibilidade, de vulnerabilidade. Assim o enfermo, além de ver-se envolvido com exames, dores, remédios e limitações físicas, ainda tem a seu desfavor a obrigação pela busca interna por melhora física e emocional, e a culpa de ter, de uma maneira ou de outra, desencadeado um processo de auto-sabotagem.

Não estamos pregando que o conforto da fé, o estímulo ao bem-estar emocional e a busca da superação psicológica do doente devam desaparecer, mas parece-nos até desumano que certos fatores de causa e cura das doenças caiam sobre os ombros dos que as portam.

Em um momento em que vivemos a valorização dos direitos à dignidade humana, e buscamos a melhoria de vida das pessoas em um Estado democrático e plural, os portadores de doenças devem ser protegidos, e minimizados, tanto os danos gerados por fatores decorrentes da doença da qual são vítimas, quanto os danos ocasionados pela representação social que a mesma gera.

 (Escrito para o Curso de Especialização em Bioética e Direitos Humanos em maio de 2009)

 

Referências:

SONTAG, Susan. Doença como metáfora. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984

Revista Quem, de 11 de março de 2007.

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