Dia 04 de junho de 2024 fui agraciada com a posse na Academia Piauiense de Letras Jurídicas, para ocupar a cadeira de número 27, que tem como patrono o Dr. Nicanor Barreto. Partilho com todos vocês a minha fala naquele momento tão significativo.
DISCURSO DE POSSE APLJ
Ilmo. Sr. vice- presidente da APLJ, Desembargador Oton Mário José Lustosa Torres, nesta ocasião representando o Presidente desta academia, Prof. Dr. Nelson Juliano Cardoso Matos, Muito querido prof. Marcelino Leal Barros de Carvalho, Secretário da APLJ, meu professor e orientador de toda uma vida acadêmica, queridíssima professora Fides Angélica de Castro Veloso Mendes Omatti, Presidente da APL e membro da APLJ, Caríssimo Dr. Nazareno César Moreira Reis, que me ladeia na honra de dividir esse momento ímpar. Caríssimos membros da APLJ aqui presentes, que representam a intelectualidade jurídica do nosso estado. Demais autoridades presentes e nomeadas no início dessa solenidade. Queridos amigos e familiares. BOA NOITE.
Ao me deter diante do computador para escrever esse discurso de posse uma série de sentimentos me invadem: alegria, honra, saudade, sensação de estar percorrendo um caminho seguro e correto, que me permitiu, chegar a esse momento. Um caminho que começou há muito tempo, mas que espero ainda tenha muita estrada pela frente.
Se o tempo voltasse como em um processo de retrospectiva e pudéssemos ser como espectadores de um filme por meio de um projetor cinematográfico antigo de acionamento manual, talvez encontrássemos as imagens de uma menininha, em uma tarde ensolarada e quente de Teresina, com sua bonecas enfileiradas e sua irmã mais nova sentadinha em sua frente para emular uma sala de aula. Uma menininha que sempre respirou a docência, mas não tinha ideia, naquele tempo, a dimensão que esse mister assumiria em sua vida.
Talvez por inspiração em sua mãe, Amparo, professora, que foi aluna da escola Normal e docente desde sua mais juventude, desde antes do nascimento daquela menininha, e olhe que as duas se encontraram pela primeira vez, quando Amparo tinha 22 anos. Uma mãe, uma esposa, uma irmã, uma filha, mas sempre uma professora, e depois, essa mãe, se tornou exemplo de pesquisadora, reconhecida em seu meio, tanto nacional quanto internacionalmente, e seu esforço de estudo ensinou a menininha, e depois a adolescente e a jovem que ela se tornaria, que sempre é tempo de estudar e buscar seus sonhos.
Talvez ainda, a docência tenha se entranhado no coração infantil da menininha, por olhar a ética de trabalho e estudo de seu pai, Geraldo Ferro, que lhe deu o sobrenome que carregou e carrega com muito zelo e orgulho, ele também professor, é formador de gerações e gerações de engenheiro civis pela Universidade Federal do Piauí. O primeiro de toda a família a buscar a formação a nível stricto sensu , sendo depois acompanhado por sua esposa e todos os seus filhos, inclusive aquela menininha.
Assim a docência era certa, mas a docência jurídica só a alcançaria muito anos depois, daquela tarde em Teresina, com sua irmã e suas bonecas. Ela chegou em uma sala de aula da disciplina de Direito Penal, ministrada por um professor que foi, a partir de então, uma inspiração para a jovem acadêmica de direito. A leveza da aula e o rigor acadêmico eram marcas desse professor se tornou seu orientador na iniciação científica, na monitoria (por três vezes) da disciplina de direito penal, e depois seu paradigma de gestor humano e cordial. Esse professor entrou na vida acadêmica da jovem, mas não ficou só lá, se tornou padrinho de casamento, ouvido atento para as angústias e preocupações da profissional iniciante e um amigo que ela traz até hoje em um lugar especial em seu coração. Quem era esse professor? o professor Marcelino.
A jovem acadêmica formou-se e se tornou professora de Direito, e como não podia deixar de ser, professora de Direito Penal. E foi como professora, e como gestora acadêmica, que pela primeira vez foi apresentada ao Dr. Nicanor Barreto de Vasconcelos, patrono da cadeira 27, para a qual teve a honra de ser eleita pelos membros da Academia.
Saindo um pouco da nossa viagem em retrospectiva, passo agora a contar uma história para todos vocês.
Mas antes gostaria de fazer uma reflexão auxiliada por Guimarães Rosa, que colocou na boca de Riobaldo uma preocupação de todo narrador:
Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, e se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos.
(Guimarães Rosa)
Este ano, 2024, completo 28 anos de docência jurídica, 28 anos ajudando no processo de formação de profissionais que fazem do Direito seu campo de luta e trabalho. E durante todo esse tempo, por todas as gerações que passaram pela minha sala de aula, vi jovens idealistas se tornarem excelentes profissionais, vi a mudança do perfil dos alunos, a mudança de ideais, vi vitórias e conquistas, nem tudo foi êxito, isso é certo, mas o saldo é relevantemente mais positivo que negativo.
Mas houve um marco definitivo na minha carreira profissional, uma visita que mudou a minha vida. O ano era 2002, e o mês era novembro, o prof. Marcelino me convidou para uma conversa na sala que ocupava como coordenador do Curso de Direito, no Instituto Camillo Filho. A pauta da conversa era meu processo formativo, queria ter notícias de como andava meus estudos pós faculdade. Quando eu entrei na sala, ele sorriu e deu-se conta que eu estava no final da minha segunda gestação, e seria mãe do terceiro filho, pois Rafael e Gabriel já tinham nascido quatro anos antes e agora estava à espera do Miguel. A conversa fluiu leve, como sempre são nossas conversas intermináveis. E foi quando o prof. Charles Silveira entrou na sala. Professor Charles foi reitor na UFPI, na década de 90, quando eu era estudante, ele era o Diretor Geral do Instituto Camillo Filho e também minha referência no ensino de Direito Penal, juntamente com o prof. Marcelino, tanto que não nutria a esperança de atuar nos quadros docentes daquela instituição, por minha disciplina já ter dois dos mais renomados penalistas do Piauí. Com os dois na sala o motivo do convite para minha visita ao ICF foi revelado, o convite para ser Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica. E o nome do NPJ foi Núcleo de Prática Jurídica Adv. Nicanor Barreto. O núcleo passou a funcionar no endereço onde foi sediada a casa desse ilustre jurista, quando veio morar pela segunda vez em Teresina, vindo de Fortaleza, no final do ano de 1966.
A vida do Dr. Nicanor Barreto de Vasconcelos, ou simplesmente Dr. Nicanor Barreto deveria ser conhecida por todos aqueles que desejam ler sobre vidas inspiradoras. O acesso a sua história não foi simples, mas tive a ventura de ter a ajuda de uma dos seus filhos, também Confrade dessa Academia, Dr. Filadelfo Barreto, que me permitiu acesso às Notas sobre a vida de seu pai, escritas, no ano de 2022, para auxiliar uma aluna do ensino fundamental teresinenese, que precisando fazer um trabalho escolar, tinha que escrever sobre o personagem que deu nome a sua rua, no caso a Av. Nicanor Barreto. E por esses escritos, vindos das memórias e do olhar filial tive acesso a vida de um homem excepcional.
Nicanor nasceu em Fortaleza, em 27 de novembro de 1916, filho de Manoel Correia de Vasconcelos, oficial do Exército, e de Petronila Barreto de Vasconcelos. Casou-se com Aglaé Fiuza Chagas e juntos tiveram 10 filhos, cinco meninas e cinco meninos: Elas são: Euterpe, Caliope, Helade, Marcilia, Adriana, e eles: Nicanor Filho, Francisco, Demócrito, Filadelfo e Leão Marcelo. Faleceu em Teresina, no dia 07 de agosto de 1993.
Um homem a frente do seu tempo, com determinação para estudar, pois buscou sempre se qualificar, submetendo-se inclusive a estudar o que na prática já era professor, tanto "que diversos professores pediram a Nicanor que desse as aulas no lugar deles, criando uma situação no mínimo esquisita: o aluno dava aulas e o professor assistia." (Barreto, 2002).
Entrou na faculdade de Direito já pai de família e quando concluiu o curso, no final da década de 1950, tinha sete filhos, estando a caminho a oitava. A busca pela qualificação marcou sua vida acadêmica, não se deixando parar pelo curso do tempo, mas entendendo em cada oportunidade a vivência suave do aprendizado.
Foi empresário, contador e advogado. Fundou a Centro eletro em Teresina, quando em sua primeira temporada morando na capital Piauiense, e quando residiu em Fortaleza, com o propósito de ofertar oportunidades melhores de estudos a seus filhos, montou uma cutelaria, que prosperou, e incentivou Dr. Nicanor a dar voos mais usados, investir suas economias em mercadorias vindas da Alemanha, que por infortunuo do destino malogrou de afundar a caminho do Brasil, gerando a necessidade de ter que recomeçar. E o local escolhido para recomeçar foi novamente Teresina, determinando a mudança da família Barreto para morar naquela casa aprazível, que mencionei e que futuramente seria o Núcleo de Prática Jurídica, onde eu trabalharia durante longos e felizes anos.
Nicanor Barreto também participou diretamente da criação, instalação e organização de tudo quanto tem nome de PISA: Cepisa, Fripisa, Agespisa, Telepisa, além de outras de nomes diferentes. Acompanhou como assessor da Cepisa todo o período de implantação da rede elétrica em postes de concreto, no primeiro Governo de Alberto Silva. Coordenou a absorção do sistema de telecomunicações do Piauí pela Embratel e, afinal, acompanhou essas empresas por longo tempo. (Barreto, 2022)
Como advogado, dedicou-se à advocacia empresarial, assessorando grande número das empresas que existiam na época.
Durante mais de vinte anos foi Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, no Piauí. É autor de estudos e do texto final de Provimento aprovado pelo Conselho Federal da OAB, regulando a transferência de Advogados de um Estado para outro.
Foi o principal responsável pela construção da sede da OAB, neste lugar onde ainda hoje ela está. Conduziu e organizou durante longo tempo e com muito trabalho, a Caixa de Assistência dos Advogados do Piauí. Em reconhecimento deste trabalho, o prédio sede da Caixa recebeu seu nome: Nicanor Barreto. (Barreto, 2022)
Muito me honra a oportunidade de ser a primeira ocupante da cadeira que tem o Dr. Nicanor Barreto como patrono, e algumas coincidências me alegram ainda mais o coração, ter o mesmo nome que uma de suas filhas, por exemplo, e ter estudado no mesmo colégio que o viu obter a sua formação em nível de ensino médio, o colégio Diocesano.
Uma mulher ocupar pela primeira vez a cadeira que o Dr. Nicanor Barreto é patrono, é muito significativo, uma vez que ele permitiu que suas filhas voassem em igual intensidade que seus filhos, uma forma de pensar não muito comum entre seus contemporâneos. Foi isso que percebi, pelas lentes Dr. Filadelfo, seu filho, quando narrou sobre Nicanor e seus filhos: Aí está o Nicanor: dos rapazes esperar determinação, força e coragem. Às moças oferecer delicadeza, carinho, apoio e liberdade para voar. E como ele gostava de ver filhas e netas voando! (Barreto, 2002)
Ser livre, talvez hoje seja o que mais anseiam as meninas, ser livre de preconceitos, de estereótipo, ser livre pra andar por aí sem medo de ser importunada tão somente por ser mulher.
A liberdade do feminino servir ao masculino, na mesma medida que também é servida, em uma troca de cuidado e cumplicidade e não apenas porque se convencionou que esse é o papel da mulher, servir docilmente.
Ser livre para ser uma pessoa inteira e plena, e se quiser ser esposa, se quiser ser mãe, se quiser ser o que quiser. Dona de si e de suas próprias escolhas. Ser livre, como uma passarinha que tem a imensidão pela frente, e o voar lhe pertence. Às meninas e mulheres aqui presentes, meu desejo: sejam livres!
Nicanor vivenciou os desafios da vida com firmeza e resiliência, recomeçando quando era necessário, sem muitos espaços para o desistir.
Essa forma de viver a vida, sem paralisar-se diante dos desafios, me lembrou um trecho do livro O Amor em tempo de cólera de Gabriel Garcia Marques: "os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as mães os dão a luz, e sim que a vida o s obriga outra vez e muitas vezes a se parirem a si mesmo."
Não desistir também tem sido a tônica da minha jornada. Nem sempre ela é linear, nem sempre sem percalços, mas sem a possibilidade de estagnar e paralisar.
Voltando aquela sala no Instituto Camillo Filho, ali começou minha história naquele espaço de formação, e começou também a convivência com vários dos hoje confrades dessas APLJ, mas uma convivência em especial me ensinou a forma como deve ser uma gestão acadêmica: firme, serena e respeitosa. Aprendi com a Professora Fides Angélica como preferir o correto ao popular, como me posicionar com clareza e sem regatear diante dos desafios. No Instituto Camillo Filho e no NPJ Dr. Nicanor Barreto foi forjada a Professora Adriana Ferro, tanto na docência jurídica, quanto na gestão acadêmica.
E já chegando ao final, volto ao começo, continuando aquela viagem em retrospectiva, lembram? Sabe aquela menininha? Se tornou uma jovem recém-formada e foi pedida em casamento por outro jovem sonhador, Mário, que se tornou seu companheiro de vida. Foi mesmo um encontro singular, aqueles dois. Sonhos e desejos parecidos, mãos dadas que enfrentaram juntas muitos desafios, mas que continuam unidas, e deles três rebentos afloraram: Rafael, Gabriel e Miguel, que seguem seus próprios caminhos e voam para realização de seus projetos e sonhos, mas que sabem que tem um ninho esperando por eles, todas as vezes que os intempéries da vida forem por demasiados cruéis. Nada como pousar, descansar para continuar a luta.
Findando este esforço de memória fico cá comigo com uma sensação estranha, de não estar fazendo justiça a todos os fatos que determinaram minha escolha pela docência jurídica, mas acho que deste incômodo sofrem todos os contadores de história, pois Camões já disse uma vez em seu Lusíadas:
Porque de feitos tais, por mais que diga;
Mais me há-de ficar ainda por dizer.
(Camões, Os Lusiadas, canto III, 5)
Muito obrigada!